domingo, 13 de março de 2016

A multidão tem fome

Por Mariana Ianelli


Picasso: Guernica

Ninguém tem culpa na multidão, ninguém tem rosto. É uma ânsia coletiva, num corpo coletivo, com pretexto de justiça contra um só grande culpado, que será malhado, dessangrado, devorado no espetáculo.


Por muito que se empanturre, nunca a multidão se farta.

Seu repasto é variado: apóstata, ladrão, louco, revolucionário, místico, gay, adúltera, bruxa, os traidores da ordem.

A multidão julga, a multidão condena. Depois mata. Vai enchendo as praças, ondeando nas ruas, apertando seu anel em torno do poste, do pretório, do pelourinho, da arena, do cadafalso.

Porém matar não é para já. Antes há as preliminares, o prazer das preliminares, o dedo apontado, as pedras, os chutes, a cusparada, a vala cavada com as unhas, a cruz nos ombros, as chibatadas.

A multidão ferve de raiva, espuma, baba. Tem fome de sangue, mas antes tem fome de espetáculo. Não quer só o porco assado, quer também a maçã na boca do porco, o detalhe cruel, a coroa de espinhos, a estrela amarela, a letra escarlate, o cabelo raspado, a marca no braço, requintes desses que são típicos das festas de humilhação física e moral.

Ninguém tem culpa na multidão, ninguém tem rosto. É uma ânsia coletiva, num corpo coletivo, com pretexto de justiça contra um só grande culpado, que será malhado, dessangrado, devorado no espetáculo.

E melhor o espetáculo quanto mais lento for, os pecados do mundo estufando o corpo do repasto.

A multidão exulta, fotografa para rever, filma, multiplica seus olhos. É um monstro mitológico se regozijando com o que vê, com o único rosto que da multidão se destaca, tão diferente, o dissidente, agora desfigurado.

A festa é pública, mas desaconselhável aos de estômago fraco. Pode acontecer a qualquer hora, em qualquer lugar. Acontece também com data e local marcados.

Basta uma plaquinha, como aquela que uma vez um cartunista pôs numa página de jornal: “BREVE AQUI MASSACRE”.

E o monstro começa a se formar.


Mariana Ianelli é escritora e mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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